14/jun/2012
Desde que li pela primeira vez Ouspensky em Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, uma imagem me surpreendeu e ficou gravada na memória: a alegoria da carruagem, comparada ao ser humano, que o autor atribuiu a Gurdjieff, o fundador do Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem (Paris, 1922). Nessa imagem o carro em si é comparado ao corpo físico, os cavalos às emoções, o cocheiro ao intelecto e o passageiro a algo que poderíamos chamar de ser superior. Explorando um pouco essa ideia, o corpo físico nos transporta, as emoções são nossa força motriz, habilmente dirigidas pela razão, que conhece a mecânica do carro, as características dos cavalos, os detalhes dos caminhos. Contudo, todo esse conjunto carece de um destino. Esse objetivo é conhecido pelo passageiro, que orienta o cocheiro. Ao menos essa seria a maneira ideal disso funcionar. Bem sabemos que vivemos uma situação diferente hoje. O carro anda mal cuidado, os cavalos mordem os freios e desandam a correr, o cocheiro não lembra do passageiro e pensa que é o dono da carruagem, andando com precisão e sem rumo. Quanto ao passageiro… bem, há muito tempo ninguém sabe dizer dele. Uns dizem que nunca existiu, outros que está inconsciente, ou ainda que viaja na carruagem, mas não consegue se comunicar com o cocheiro.
Muita coisa pode ser inferida do que foi colocado acima. E, como toda a imagem, sempre há um ponto onde a metáfora e a realidade não se encaixam mais. No entanto há uma riqueza capaz de nos fazer compreender algumas coisas importantes, como o papel da razão e das emoções dentro de um panorama mais amplo, além de dimensionar com certa clareza o que faz esse “ser superior”, palavra que de tanto usada já está meio gasta.
Entretanto, ressalto aqui um aspecto. O fato de não sabermos para onde ir. A humanidade caminha como se cada passo definisse o seguinte. E cada vez mais rápido. Ao olharmos para a frente, com os olhos do cocheiro, vislumbramos uma projeção do passado recente, infinitamente. – Daqui a cem anos teremos aparelhos interativos totais, capazes de mediar nosso contato com o mundo real, melhorando-o. Viajaremos no espaço. Viveremos muito mais. E… seremos felizes… por que não? – … Será que as coisas acontecerão assim? Num continuum linear de realizações da ciência e da tecnologia?
Um olhar
mais profundo sobre nossa história contradiz essa visão. Andamos de uma forma
diferente, avançando e recuando, justamente porque não conhecemos o caminho e,
errando, aprendemos (ou se espera que aprendamos!).
Há indícios de
decadência em quase todos os campos, em nossa civilização. Muros são levantados
e ficam cada dia mais altos. A periferia foi abandonada e o centro apresenta
sinais de decomposição. Mesmo com o brilho das conquistas científicas e tecnológicas,
a falta de solução para problemas antigos é uma realidade ainda presente, senão
crescente.
Lembro que na década de 1970 o agrônomo e ambientalista pioneiro José Lutzemberger já alertava para o fato de que, sem uma mudança em nossos hábitos de consumo e no que entendemos como “viver bem”, o planeta Terra estaria condenado à exaustão de seus recursos em curto espaço de tempo. Isso se agravava com o natural e desejado advento de classes excluídas ao parque de diversões da classe média. O mesmo valeria para as nações emergentes, que almejam o status de desenvolvidas e, em consequência, aos privilégios de consumo e desperdício que caracterizam os ricos.
Sim, muitos são alcançados pela propaganda de um mundo sustentável. Muitos adotaram as velhas sacolas de pano para fazer compras. Preferem uma luminária de palha ao acrílico, uma camiseta de algodão à fibras sintéticas (Krisnamurti preferia o contrário, justamente para não consumir insumos naturais…). Seria isso um outro modismo? Estaríamos, agindo assim, nos aproximando da simplicidade de ter “poucas roupas e poucas posses”, por exemplo, ações preconizadas por sábios e santos de todas as origens?
Na minha
opinião há, sim, um processo em andamento. Não é, no entanto, guiado pelas
lideranças humanas. Acontece no organismo universal, fruto da própria natureza
deste. O alvo desse processo não é a nossa salvação, mas a continuidade e saúde
do Universo. Nós podemos, ou não, estar nessa. De qualquer forma, seguindo a
tradição de aprendizado por erros e acertos, não poderemos nos furtar às
consequências dos nossos atos nos últimos séculos. Isso já ocorreu muitas vezes
em nosso passado, ao tropeçar podemos, enfim, redirecionar, reconstruir. Tem
sido assim. Em nenhum momento alcançamos uma mudança de rumo sem passar por um
grande abalo nas estruturas do mundo vigente. Ao olharmos nossa trajetória como
algo que transcende as civilizações que construímos podemos, então, perceber
que existe uma direção. Esta, porém, não é escolhida por nós, mas tem origem em
forças acima da humanidade.
Voltando ao passageiro viajando na carruagem, esse é o elemento que liga o ser humano à sua origem, o Universo. Esse ser interior é um habitante cósmico, numa vida mais ampla, que ultrapassa nossa existência individual e nossos jogos terrenos. Ele sabe para onde deve ir. Por essa razão “religare” é religião. O passageiro precisa voltar a poder dizer ao cocheiro o destino que conhece. Esse, talvez, seja o caminho entre a inocência, já perdida, e a sabedoria, nossa única salvação.